TRANSPLANTE DE FÍGADO COM DOADOR VIVO

 

Até a década de 70, não existiam perspectivas de tratamento para pacientes com doenças do fígado em fase avançada. Dispunha-se apenas de medidas paliativas, capazes de diminuir seu sofrimento até a fase final da evolução natural da doença. Entretanto, o transplante de fígado abriu perspectivas progressivamente mais animadoras representando, provavelmente, o maior progresso da hepatologia moderna. Centros com maior experiência referem 90% de alta hospitalar e 70% de sobrevida aos 5 anos após o transplante.

Esses ótimos resultados, obtidos numa população sem outra alternativa terapêutica, explicam porque o número de enxertos não é suficiente para atender todos os candidatos a transplante. Em conseqüência, foi necessário, em todos os países que realizam esses procedimentos, organizar listas de espera e adotar critérios para definir a seqüência de atendimento.

No Brasil, em 1997, votou-se uma lei criando a lista única de receptores para cada centro, e determinando um critério cronológico de atendimento, conforme a seqüência de inscrição na lista. Em São Paulo, a lista inclui cerca de 3.000 pacientes com elevada mortalidade durante a espera, visto que o transplante é realizado somente cerca de 4 anos após a inscrição. O problema adquire particular importância no transplante pediátrico, uma vez que, para esse grupo, a disponibilidade de enxertos é ainda menor.

Visando a contornar a escassez de órgãos e suas conseqüências, descrevemos, com Sérgio Mies e José Roberto Néri, em 1988, uma técnica para uso pediátrico, que emprega enxerto de doador voluntário, denominada transplante intervivos. O lobo esquerdo do fígado do doador adulto (20 a 25% do órgão) é transplantado no receptor infantil. A cirurgia do doador implica em risco muito baixo, uma vez que a ressecção do segmento empregado como enxerto implica em mortalidade de apenas 0,3%, e não exige transfusão de sangue. - O processo de regeneração, característico do fígado, confere um atrativo adicional ao procedimento. Em 30 dias, restitui ao doador sua massa hepática original e faz com que o segmento transplantado cresça até atingir o volume do fígado normal para o tamanho do receptor. Atualmente, essa técnica empregada na maioria dos centros transplantadores pediátricos reduziu a mortalidade na lista de espera referidas na literatura de 50% para 5%.

A partir da década de 90, em países onde é proibida a retirada de órgãos de cadáver, algumas equipes iniciaram o emprego dessa técnica também em adultos. O enxerto usado é o lobo direito (50/60% do órgão), cuja retirada do doador implica num risco maior, com mortalidade estimada ao redor de 2%. Entretanto, como o transplante intervivos evita a lista de espera, sua aceitação tem sido muito grande também em países que usam enxerto de cadáver. Já são referidos mais de 4.000 casos operados em 30 centros nos EUA, 15 na Ásia e 5 na Europa.

Em 1999, em face da alta mortalidade na lista de espera, a Unidade de Fígado iniciou o emprego da modalidade intervivos em adultos. Já foram realizados 148 transplantes intervivos, sendo que os últimos 100 no Hospital Israelita Albert Einstein, com o qual a Unidade de Fígado estabeleceu uma parceria para realização de transplantes, inclusive em pacientes SUS. Não houve mortalidade entre os doadores, cujo tempo de internação médio foi de 3,8 dias.

Os resultados nos receptores têm repetido os obtidos pelos outros grupos com grande casuística, ou seja, semelhantes aos com enxerto de cadáver. As dificuldades decorrem do menor volume do enxerto e do menor diâmetro dos vasos e da via biliar a serem anastomosados. A variação anatômica da via biliar faz com que, praticamente, para cada caso seja necessário realizar um tipo diferente de reconstrução. Apesar dessas dificuldades, o transplante de fígado intervivos em adultos representa o maior progresso dos últimos anos no setor, merecendo atenção especial em todos os congressos que discutem o tema.

Em essência, o grande atrativo da modalidade intervivos consiste em evitar a espera na lista de receptores, abrindo perspectivas para pacientes que, de outra forma, evoluiriam para óbito antes de serem transplantados. Todavia, a dependência de uma doação voluntária cria cenários inéditos, do ponto de vista ético, que devem ser amplamente discutidos. É necessário preservar a autonomia do doador, que é submetido à pressões emocionais inevitáveis, uma vez que de sua decisão depende a vida de um ente querido.

De uma maneira geral, deve-se salientar que somente centros com grande experiência em ressecções hepáticas e em transplantes convencionais podem realizar a modalidade intervivos. Apenas nessas circunstâncias é garantida ao doador a retirada do enxerto com um risco eticamente aceitável. Mais especificamente, o procedimento deve ser analisado com vistas aos princípios básicos da ética médica. A modalidade baseada na doação voluntária do lobo direito é útil? Sim, porque representa a única esperança para os candidatos que não podem esperar o tempo previsto para o transplante com órgão de cadáver. É justa? Sim, porque aumenta a chance dos inscritos na lista. - Finalmente, no que diz respeito ao princípio primo non nocere, devemos considerar duas vertentes antagônicas.

Uma, que proíbe ao médico causar dano a qualquer um dos seus pacientes, e outra, que garante a todo ser humano o respeito ao seu direito de autonomia. Esse princípio confere ao doador o direito de correr um risco conhecido para salvar a vida de um paciente a ele emocionalmente relacionado. Esse binômio leva ao conceito do "consentimento legítimo", baseado numa decisão isenta de influências de qualquer tipo, sejam elas emocionais, familiares ou outras. Num contexto no qual a vida de um ente querido depende de uma decisão desse tipo, é inevitável que ocorram influências que podem limitar a liberdade de decisão do doador. Cabe então à equipe responsável obedecer a uma sistemática capaz de garantir ao máximo seu livre arbítrio.

Na Unidade de Fígado, havendo indicação, o receptor e seus familiares são informados da existência da alternativa intervivos e dos seus resultados. - Ocorrendo anuência do receptor e surgindo um doador em potencial, sua avaliação é realizada por outra equipe médica, sempre na ausência do receptor e de seus familiares. Tem início com a descrição minuciosa dos riscos inerentes à retirada do enxerto. A seguir, obedece a um ritual dividido em três etapas, cada uma incluindo exames capazes de esclarecer, progressivamente, se o potencial doador pode efetivamente ser aproveitado.

Após cada uma das etapas, o doador é solicitado a assinar um consentimento formal. Antes de cada assinatura, mesmo se os exames demonstrarem que a cirurgia é possível, o doador é informado de que uma eventual desistência será apresentada ao receptor e seus familiares como decorrente de incompatibilidades anatômicas ou de outro tipo. Se após esses procedimentos, o doador confirmar sua decisão inicial, sua anuência é interpretada como um "consentimento legítimo".

Ao conduzir esse processo, a equipe que indica e realiza o transplante intervivos dá um bom exemplo do que se espera do médico transplantador. Ele representa a interface entre a rápida evolução da medicina atual e o verdadeiro beneficio dos pacientes. Para bem exercer essa função, deverá desenvolver e usar cada vez mais discernimento e princípios éticos, que tendem a se adaptar a esse mesmo progresso, até há pouco nem imaginado

 

Autor                                        

Dr Silvano Mário Attilio Raia



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